No coração de Lisboa, na loja LATTE, tivemos uma conversa incrível com Nuno e Rodrigo, os fundadores desse espaço que é muito mais do que uma loja. Com histórias que passam pelo amor por tênis e pela vontade de trazer algo novo para o cenário de streetwear em Portugal, eles contaram como tudo começou e os desafios que enfrentaram para chegar até aqui.
Para entrevista, eles escolheram seus tênis favoritos: Bape Sta & Airwalk The One (curiosidade: após 203 entrevistas, pela primeira vez essas marcas aparecem no Kickstory!). Eles nos mostram como esses modelos contam um pouco da trajetória e das inspirações de cada um. Mais do que vender roupas e acessórios, a LATTE virou um ponto de encontro para quem vive e respira essa cultura.
A LATTE não é só sobre produtos, é sobre criar uma comunidade e deixar sua marca no streetwear português. Fazemos questão de visitar lojas de tênis e/ou streetwear em nossas viagens, e perceber como cada uma tem sua história, trajetória, e reforçam mais ainda como elas são essenciais para essa cultura.
Nuno: Eu tenho 34 anos e nasci em Lisboa. Conheço o Rodrigo há uns 10 anos, trabalhamos juntos antes em outra loja. Um dia a gente decidiu que poderíamos criar algo novo em Portugal e preencher alguns buracos que existiam – e alguns anos depois, estamos aqui. Sempre tive interesse por moda, streetwear, mas começou pelos sneakers. Foi por essa nossa paixão, por esse universo, que decidimos iniciar esse projeto.
Rodrigo: Tenho 41 anos, sou dos Açores, e vim para cá estudar design gráfico, uma área que está ligada com essa cultura. Tivemos a sorte de nos encontrar em uma loja em que trabalhamos juntos, e ganhamos a experiência de contato com o cliente, de entender a relação entre marca, produto e consumidor.
Rodrigo, por que de todos os seus tênis, você escolheu o Airwalk The One para a entrevista do Kickstory?
Rodrigo Eu estudei design industrial e nessa área aprendemos a ver os objetos, a partir de seu design, de forma funcional, não apenas como produtos para consumo. Como exemplo o óculos Aviator da Ray-Ban, ou a própria calça 501 da Levi’s, que são objetos que foram criados com um propósito e uma “força fashion” fez com que se tornassem contemporâneos. Mas a forma que foram desenhados, foi para solucionar um problema. Isso nos faz olhar para essa cultura de resolver problemas, que é uma cultura que já tem 40 anos, e que já existe aquela ideia de herança, fazendo com que muitas peças sejam vistas como de coleção. Nós temos a Stüssy por exemplo, que já tem os seus 44 anos: às vezes vem um pai e o filho usando Stüssy. Existe uma atenção especial a algumas marcas e produtos. Os tênis, por exemplo, recebem uma atenção especial, e com a cultura do hype é mais ainda. Alguns tênis chegam a custar o mesmo que obras de arte e joias.
Falando da Airwalk, quando inventaram a marca era para resolver um problema que até aquele momento não tinha solução: que era um tênis que durasse mais do que o normal para um skatista. Naquela época os tênis de skate, como Vans e outras marcas, em dois ou três meses já estavam prontos para ir pro lixo, porque eram tênis pensando mais na parte fashion, do que de resolver um problema de durabilidade. Dificilmente um tênis da Nike com 30 anos ainda vai estar bom para ser usado, a sola com certeza vai se desfazer antes disso. Esse Airwalk eu usei no ensino médio, na faculdade, usei para trabalhar, e apesar da evolução da marca ter ido para um sentido diferente, essa continua sendo uma peça de design de referência. E estamos falando de uma marca que surgiu no final dos anos 80, praticamente no auge do basquete, onde ainda havia um certo preconceito em relação a comunidade do skate, nenhuma marca tinha realmente tentado resolver esse problema. Inicialmente a Airwalk era para ser vendida apenas na Califórnia, mas acabou ganhando essa notoriedade. Comprei esse par em 96.
Nuno, qual foi seu primeiro contato com tênis, e porque você escolheu o Bape Sta para a entrevista?
Nuno Para mim, a primeira vez que fiquei entusiasmado para comprar um tênis foi com o Vans Old Skool, eu tinha uns 15 anos. Era o tom clássico de azul escuro, azul claro, com risca branca. Porém, o que me fez começar a colecionar e ver o tênis de uma maneira diferente foi com o Nike Air Force 1. Foi na época que comecei a ouvir e ver videoclipes de hip-hop, consumir toda essa cultura, e o que todos usavam era o Air Force branco. Foi assim que comecei a comprar e a colecionar.
Em casa tenho alguns Air Forces brancos bem cansados (risos), mas tive que escolher o Bape Sta. Eu tinha 18 anos quando comprei ele, na primeira vez que fui para Londres com os meus pais. Tinha uma loja muito pequena da Bape e eu já estava ligado à cultura do hip-hop, ao Pharrell Williams, Snoop Dog, Lil Wayne, enfim. Eu lembro que eu queria muito ir na loja e o Bape Sta tava lá, obviamente eu gostava muito da silhueta, porque basicamente é um Air Force. Na época, ter esse tênis era poder ser como os rappers que eu ouvia e via nos videoclipes, e também usar uma peça que poucos tinham acesso. Na época, eu não vi mais ninguém que tivesse esse tênis em Portugal, e ao mesmo tempo na época eu não dava o respeito que eles mereciam. Como podem ver, eu usei e vivi muita coisa com eles, na época da faculdade usava praticamente todos os dias. Por isso escolhi falar desse par.
“Na época, ter esse tênis era poder ser como os rappers que eu ouvia e via nos videoclipes, e também usar uma peça que poucos tinham acesso. Na época, eu não vi mais ninguém que tivesse esse tênis em Portugal, e ao mesmo tempo na época eu não dava o respeito que eles mereciam. Como podem ver, eu usei e vivi muita coisa com eles, na época da faculdade usava praticamente todos os dias.”
Vocês escolheram tênis com referências culturais bem diferentes. Como o tênis de cada um reflete vocês como apreciadores dessa cultura de tênis?
Rodrigo Mostra como somos diferentes, com o backgrounds que temos. Acho que foi por essa razão que juntos, nós fizemos algo especial. Enquanto ele vêm da cultura do hip-hop, eu sou da cultura do eletrônico. Nossos backgrounds se cruzam de várias formas, mas temos linguagens e influências que vêm de nichos diferentes, o que ajuda na curadoria das marcas que temos na loja. Precisa ter uma sintonia, temos que estar de acordo, mas tem coisas mais a ver com os meus gostos e outras mais a ver com os dele. Assim também é uma boa forma de mostrar o quão diversa é essa cultura, como tem algumas coisas que vêm de lugares diferentes.
O Nuno é mais entusiasta de tênis do que eu. Eu sou um pouco mais velho, sou um country boy dos Açores. Lá as pessoas não podiam ser exigentes com o tênis, as coisas não chegavam lá. Então eu tive uma relação mais pelo objeto em si, do que propriamente do colecionismo. Se eu tivesse o tênis eu teria que usar, até porque eles foram feitos para isso. Estamos esperando o dia em que alguém faça um tênis para durar mil anos (risos).
Quando nós celebramos o Air Max Day em 2023, falamos com a nossa comunidade para trazerem os Air Max deles. Nós tínhamos aqui desde aquele imaculado, que saiu da caixa para ser exposto na loja, até aquele que estava completamente usado. Isso demonstra que não interessa se usamos ou não usamos o tênis para avaliar a adoração que temos com eles.
Eu quero que olhem para o meu tênis e tenham a sensação de que eu estou usando algo que, para você ter um igual, vai precisar pegar um avião, tem um esforço do meu lado de tentar ter essa diferenciação. E isso faz parte dessa cultura.
“Mostra como somos diferentes, com o backgrounds que temos. Acho que foi por essa razão que juntos, nós fizemos algo especial. Enquanto ele vêm da cultura do hip-hop, eu sou da cultura do eletrônico. Nossos backgrounds se cruzam de várias formas, mas temos linguagens e influências que vêm de nichos diferentes, o que ajuda na curadoria das marcas que temos na loja.”
O que motivou vocês a se unirem para criar a LATTE, apesar dos desafios e incertezas no mercado?
Rodrigo A loja em que trabalhávamos tinha a ideia de aumentar e ampliar o negócio, abrindo uma segunda loja. O mercado português é muito pequeno e próprio, então a maioria dos varejistas sempre tiveram muito receio em investir neste tipo de loja. Quanto menor o investimento, também é menor o interesse das marcas. Por esse e outros motivos, a loja que trabalhávamos decidiu não seguir com a ideia, e para nós foi uma desilusão porque acreditávamos no potencial disso.
Chegou um momento que tivemos literalmente a conversa – ou esperamos eternamente alguém fazer isso para fazermos parte da equipe, ou tentamos nós mesmos abrir uma loja. Ficamos uns 2 anos ainda pensando na ideia, era um compromisso muito grande. Ajudou também que Lisboa bombou muito nos últimos anos, aqui falamos mais em inglês do que em português. Não só pelo aumento de turistas, mas também pela quantidade de estrangeiros que se mudaram pra cá.
Mas basicamente a trajetória foi essa, de dar esse grande passo e no caminho ainda poderíamos servir de inspiração para a própria comunidade de tênis portuguesa.
Nuno Achamos que as oportunidades não estavam sendo aproveitadas, apesar de ser sempre um risco, mas estávamos confiantes que conseguiríamos fazer algo diferente que preencheria um gap no mercado. Estamos nessa há cinco anos, desde a época do Covid.
Rodrigo Na pandemia quase tivemos que fechar. Mas com o passar do tempo as coisas foram voltando, tinha um limite de pessoas que poderiam entrar na loja. E não é apenas uma loja de compras, também é um espaço de convivência. Ficamos muito limitados, mas aqui estamos.
Aqui temos um misto de marcas portuguesas e de outros países. Como funciona a curadoria de vocês?
Nuno A curadoria é muito daquilo que gostamos e consumimos. No começo foi mais as marcas que tínhamos acessos através dos nossos contatos, logo no começo já conseguimos marcas como a Carhartt, Stüssy, Pleasures e a Market. As outras acabaram vindo pelo nosso portfólio de marcas, e tem também as que a gente descobre quando vamos visitar os showrooms em Paris, mas é um processo muito orgânico. Agora estamos focados mais em uma vertente “Made In Portugal”, e tentar ter isso o mais presente possível. Mesmo que a marca não seja portuguesa, normalmente as marcas de streetwear são produzidas aqui. Então esse está sendo o nosso foco não só pela questão da qualidade, mas também pela logística, a pegada de carbono é menor também, além de investirmos na nossa própria indústria.
“Agora estamos focados mais em uma vertente “Made In Portugal”, e tentar ter isso o mais presente possível. Mesmo que a marca não seja portuguesa, normalmente as marcas de streetwear são produzidas aqui. Então esse está sendo o nosso foco não só pela questão da qualidade, mas também pela logística, a pegada de carbono é menor também, além de investirmos na nossa própria indústria.”
Como vocês acham que a cultura do tênis e streetwear em Portugal se diferencia dos outros países?
Rodrigo A cultura do tênis comparado com Paris ou Londres, por exemplo, é muito mais fraca. Lá você tem muito mais acesso.
Nuno Aqui em Portugal as pessoas têm acesso à informação e conhecimento sobre a cultura, só que muitas vezes não têm o poder de compra, ficando assim mais difícil ter acesso aquilo que gostam ou querem ter.
Rodrigo Na minha opinião somos muito fracos no jogo dos tênis, mas muito fortes no jogo da roupa. A indústria têxtil portuguesa é considerada uma das melhores, não compete com o “Made In Italy”, só que tem a vantagem para quem produz porque são preços muito mais acessíveis. Nos últimos 15 anos, algumas marcas menores e independentes foram tendo mais acesso a essas fábricas. Então as marcas que estão mais preocupadas com a qualidade do que quantidade, olham para Portugal como uma oportunidade. Muitas pessoas que vêm aqui, ao verem que é Made in Portugal, se torna um fator determinante para consumirem. Elas podem ver as peças ao vivo, tocar nos tecidos, e perceber essa qualidade.
Nuno Eu acho que aqui a cultura dos sneakers é mais presente do que do streetwear, porque tem mais comunidade envolvida, porém ainda não tem tanta expressão. Precisamos de mais individualidade também, se você andar na rua verá muitas pessoas vestidas da mesma maneira, com o mesmo estilo. Somos um país muito pequeno, não vou dizer que Portugal tem uma identidade portuguesa, falando em estilo, sinto que misturamos várias coisas de vários lugares. Mas sinto que se todos nós fizermos o nosso papel, eventualmente vamos chegar a esse ponto.
Rodrigo Essa foi uma das ideias para a loja também. Percebemos que a cultura streetwear era muito fechada para a sua comunidade, e por isso quisemos tornar mais aberta, quase um museu, sabe? Então vem aqui clientes que entende exatamente o que temos aqui, e que pode até nos ensinar sobre alguma coisa da cultura, até uma pessoa que nem sequer ouviu falar na palavra streetwear. Para a gente é muito gratificante receber todos os tipos de clientes. Teve uma vez que a gente vendeu um boné da Stüssy para uma avó de 80 anos, que não sabia o que era a marca, ela só queria um boné para ir a praia.
A gente admira muito a coragem de vocês em abrir uma loja num mercado com pouco investimento nessa cultura, e fazer isso tão bem. Que dica vocês dariam pra quem quer começar um negócio nesse cenário?
Rodrigo Tudo o que você quiser fazer, pense e planeje muito antes.
Nuno Não é tão fácil quanto as pessoas imaginam. Tem gente que pensa que ter uma loja é uma coisa glamurosa, porque olham somente as viagens e os relacionamentos, mas não é bem assim. Tem muitas contas a pagar, impostos, enfim. Meu conselho é, primeiro, trabalhar em uma loja antes pra ter uma ideia de como tudo funciona. Eu trabalhei em wholesale também antes da Latte, assim consegui entender melhor como funciona as margens de lucro e como as agências trabalham também. E segundo, estudar muito – quais são as leis, impostos, o tipo do negócio, assim consegue entender bem as exigências do mercado.
Rodrigo Abrir uma loja só é possível se você tem muita vontade e vocação, se for visto apenas como um negócio, tem outros negócios que fazem muito mais sentido.