“Sou o Cauê Ueda e tenho 38 anos. Se eu era um sneakerhead, então hoje eu sou um ex-sneakerhead. Não acho que tem essa coisa, mas gastei muito dinheiro e tempo com tênis, e acho que tempo é mais complicado que dinheiro. Não sei se eu colecionei tênis, mas eu comprei e guardei muitos deles, e de alguma forma eu me arrependo disso, acho que eu deveria ter usado todos esse tênis ou até nem ter os comprado. Mas acho que isso também faz parte de um processo de amadurecimento, de você se conhecer melhor.
Sou diretor de fotografia, trabalho como produtor executivo de filmes de publicidade, em uma produtora chamada Tamago. Nesse meio da vida eu acabei arranjando um side project chamado Metanol, que é um ajuntado de gente com vontade de fazer som e eu no caso faço som com imagem. Trabalho como artista visual na Metanol, faço projeções e tocamos na Virada Cultural pela primeira vez. Dá trabalho viu, parece que não, mas dá trabalho. Fazemos festa de rua onde a gente produz tudo e tals, tem gente que chega falando “olha lá os gatinhos tocando, parece uma boy band” mas os gatinhos aqui 3 horas antes estavam limpando esterco de cavalo da PM porque a rua tava toda cagada.
Skate pra mim foi uma maneira de ter outras amizades que não eram as amizades da rua ou de jogar bola. Então na minha época de skate tinha um cara que andava pra caralho, o Eric Koston, e ele tinha o seu próprio tênis o éS K3. Na época não tinha muito signature shoes dos atletas e etc. Tinha o Sal Barbier, que era o único que tinha tênis de skate; tudo bem, teve o Tony Hawk, Jason Lee e etc, mas o cara mais foda era o Sal. Ele andava bem esquisito mas ele tinha um tênis, o Sal 23, junto com a marca Etnies que era uma das três principais marcas de skate da época junto com a Vans e Airwalk. Esse era um tênis que todo mundo queria mas ninguém tinha. Especialmente o azul bebê, porque naquela época era muito foda você andar de skate, com 16 anos usando um tênis nessa cor. E era muito difícil de arranjar, porque não dava pra importar tênis, a Nike tinha tênis a rodo, mas só meia dúzia de lojas na 24 de maio que traziam.
A Etnies abriu uma outra companhia, a éS, e aí o Koston foi “adotado” pela marca. Eles produziram juntos um tênis com mesh, solado caramelo, amortecedor e a galera chocou pois ninguém nunca tinha pensado em fazer um tênis com isso antes. Foi aí que lançou o éS K1. Eu tinha por volta 16 ou 17 anos e fiquei maluco por esse tênis. Com o governo do Fernando Henrique começou a ter uma abertura na importação de tênis de skate. Lembro que comprava as TransWorld na banca lá na Paulista, tinha uns catálogos de tênis e pensava “caralho, dá pra ter esses tênis!”. Eu cheguei na minha mãe e pedi o cartão de crédito dela e ela “mas o que você vai fazer com isso?”, eu respondi “vou comprar um tênis” – e não tinha internet na época gente – ela perguntou indignada “mas como?” e eu “vou comprar um tênis pela revista”.
Eu peguei o encarte que tinha uma parte destacável, era tipo o Almanaque da Turma da Mônica, preenchi todos os campos com todas as minhas informações e depois mandava por fax para eles, por fax! A pré-internet (risos). Comprei o tênis por 50 dólares, paguei mais 15 de imposto, e daí cheguei na escola com o tênis que ninguém tinha nem se quisessem, mesmo! Só se você fosse na loja FTC em São Francisco, e eu consegui ele pelo fax! Moral da história: tive os tênis do Tony Hawk, Jason Lee, uns que o pessoal nunca tinha visto.
Quando lançava um tênis lá na loja dava sold out muito rápido eu ligava pra eles com um inglês horrível perguntando quando o tênis ia chegar. Enfim, lançou o K1 lá na gringa e eu consegui comprar, só usava de vez em quando para preservar o tênis e não usava ele na lixa nem fudendo.
Daí chegou o K2 assumindo que era tipo um Asics só que da éS: era cinza com verde limão, tinha amortecedor, era todo fosforescente, meio doido. A gente bebia muito da cultura do Rap e os caras usavam uns tênis desses, é daí que veio a origem dos tênis que a gente usa hoje em dia. O tênis do Sal Barbier tinha o número 23 por causa do Jordan gente, tudo vem ali do basquete, foi algo do tipo “pô, vamos tirar uma onda, vamos fazer um tênis de skate e costurar um 23 nele, que aí vai ser um Jordan de pobre” (risos).
Enfim, por volta de 2001 eu estava na faculdade já tentando deixar de lado essa coisa de tênis. Tentando né porque ainda durou mais uns 4 anos gastando muito dinheiro com eles. Fui pra New York e visitei a Supreme que na época era uma piada porque a loja era composta de uma TV, nada de roupa e um chaveiro que custa tipo 500 dólares. Mas quando eu estava lá eles lançaram o K3 preto e branco, eu rodei a cidade inteira procurando que nem louco por um desse preto e óbvio que não tinha, só tinha um branco tamanho US9. Mó botão e era mega cara, tava uns 120 dólares. Daí o vendedor da loja falou “é isso aí que tem porque é sold out, só tem dois pares na loja, se você quiser pegar pega e se não quiser, alguém vai pegar” aí óbvio que eu levei esse tênis. Saí da loja com o tênis dançando no meu pé e chegou um cara em mim muito style “nossa, que foda esse seu tênis” eu fiquei todo felizão!
Voltei para o Brasil, e aí eu não tinha a manha de usar um tênis todo branco com detalhes em vermelho, ele era um tênis simples. Passou-se anos, e óbvio que ainda ninguém tinha esse tênis, só um amigo meu que tava em New Jersey – ele conseguiu um com o Bam Margera pré tudo, pré CKY ou pré Jackass. Ele conheceu o cara em uma session de skate e eles fizeram um esquema no qual ele conseguiu o preto com vermelho só que tamanho US12 sendo que ele calçava US9, ele parecia um palhaço com o tênis (risos).
Passou muito tempo, entrou a cultura da Nike SB e comecei a comprar porque eu vinha dessa cultura de skate e basquete. Comecei a colecionar Nike SB, Nike Dunk e eu comprava tudo pelo Ebay. Em uma dessas, eu me liguei e comecei a procurar no site para comprar o K3. Achei uns pares por 500 dólares, 600 dólares, K3 em homenagem aos Lakers que era preto e roxo, de todos os jeitos. Eu queria comprar todos os Koston que eu achasse, então teve uma época que eu cheguei a ter uns 15 K3, tinha uns 5 K2, uns 4 K1. Veio um moleque todo boy falando que queria comprar um K3 meu e que pagaria o quanto eu quisesse – acabei vendendo 6 pares pra ele por mil reais cada.
Eu continuei colecionando esses tênis até que uma hora eu decidi parar. Encheu o meu saco, estava gastando muito dinheiro com isso, na época cheguei a ter 90 pares e refleti que não tinha nada a ver eu ter tanto tênis. Eu cogitei a vender eles, na época que vocês me contactaram eu tinha acabado de ler uma matéria sobre um dos maiores colecionadores de tênis falando sobre desprendimento. Eu não leio matéria de tênis porque sou totalmente desconectado com essa cultura de sneaker, eu gosto muito de tênis como todo mundo da minha geração dos anos 80.
Pois bem, hoje de manhã eu fui pegar o tênis para as fotos e quando abri a caixa: hidrólise. Hoje em dia eu tenho trabalho em fazer performance, da ação, e então eu tive a idéia de destruir o tênis com vocês! Acho que é uma história para vocês compartilharem com as pessoas, é uma história pra eu contar pra mim mesmo, para eu ter essa memória que é um momento de destruição do meu tênis. Vocês tiram fotos dele todo lindo e inteiro, e depois dele todo destruído.
E acho que a minha relação com o K3 é um pouco de frustração minha por eu nunca ter jogado basquete, aquele Jordan XII em que o K3 foi inspirado, sempre foi um tênis muito caro que só boy conseguia comprar. Eu comentei com o Victor que é um dos integrantes do Metanol também, que eu queria vender esse tênis e ele comentou “esse tênis deve ter um valor fodido pra você, ou talvez para algum maluco na gringa, mas aqui no Brasil todo mundo quer comprar Yeezys ou esses tênis que são mais esporte. Você não vai vender isso nunca e se conseguir vai ser por 50 reais. Aguenta aí”. Eu segui o conselho e continuei com eles.
Fui pegar o tênis agora e veio aquele misto de sentimento em que eu percebi: Meu passado está ruindo, literalmente, eu queria muito esse tênis, consegui comprar mas nunca usei! E isso faz com que eu repense essa nossa relação com o consumo, não tem como não pensar que nesse sistema capitalista a gente não vá comprar coisas e etc, e isso até que tudo bem. Tudo bem comprar o tênis, o problema é não usar. A treta é meu pai virar pra mim e falar “Cauê você não tem tanto pé, você não vai viver pra usar todos esses tênis”, e ele estar certo. Hoje em dia eu uso um tênis que eu nem comprei, foi a Nike que me deu.
Você precisa usar o que tem, e essa é a minha contra resposta quando um cara vem e fala “como assim você tá vendendo a sua coleção de tênis?” tem que colocar para rodar. Antes eu só usava os meus tênis fodidos porque eu tinha mais três guardados no armário, grande merda! Hoje em dia eu tenho dois tênis que eu preciso superar, que são esse K3 e um Nike SB da Medicom que eu nunca usei também, e hoje é o momento pra isso e dar umas boas risadas.
Acho que essa é a mensagem que eu tenho que superar hoje, mais do que uma entrevista e fotos, mas para mim tem um valor especial que é me desfazer dele e ver se amanhã eu vou estar batendo a cabeça na pia ou se vou ficar uma pessoa melhor (risos).”
éS Koston 3
Dono: Caue Ueda (U-RSO)
Comprado: 2007
Tamanho: BR39/US8
Fotos por: Kickstory